Cada vez que Tarantino lança um
novo filme existe uma grande agitação. Pulp Fiction é um dos maiores filmes de
culto de sempre por razões que todos sabemos e cada vez que surge um novo
Tarantino existe uma expectativa enorme no sentido de termos uma espécie de
novo Pulp Fiction. O problema é que Tarantino evoluiu. Saiu do seu carismático entretenimento
gangster para se debruçar sobre questões um pouco mais sérias, como o nazismo,
o racismo, e agora, com The Hateful Eight, as raízes dos grandes pecados dos
Estados Unidos da América que durante tanto tempo têm sido escondidos, diria
mais, ao longo de décadas têm sido esquecidos tal é a grandeza do trauma dessa
nação. Não estarei a exagerar se disser que mais de metade dos americanos não
sabiam que tinha existido escravatura nos Estados Unidos até há cerca de apenas
150 anos, e o esforço de Tarantino para tratar tais temas tabu, sem abdicar do
seu estilo pessoal, é de louvar, bem sabendo que não é por esses motivos que
existe uma legião de fãs a suportá-lo. Por muito egocêntrico que o homem seja,
a verdade é que tem motivos para isso. A série Z de Death Proof, o gangster
movie de Reservoir Dogs e Pulp Fiction, o revenge flick asiático de Kill Bill,
o western de Django, tudo isto são cartas de amor a um certo cinema outsider
que preencheu a história da sétima arte norte-americana e que, graças a
Tarantino, deixou de ser outsider e passou a ser um orgulhoso mainstream de
qualidade respeitado por praticamente todos os quadrantes do público e da
crítica.
Em The Hateful Eight Tarantino
reduz o cinema à pureza da trama, da interpretação, da personagem, em
detrimento de explosões, perseguições e grandes cenários. Aqui existem dois:
uma diligência e uma estalagem perdida algures no meio de um inóspito Inverno
de meados de 1870 nas montanhas do Wyoming, aqui filmadas em película num
glorioso formato 70 mm, coisa que já não se usa há 40 anos. Mais uma vez o
realizador envia carta de amor ao lendário compositor Ennio Morricone e recicla
a cunho próprio o western spaghetti, actualizando-o e dando-lhe uma rara
profundidade que rivaliza sem medos com Sergio Leone, ainda que aqui escolha um
minimalismo que irá ser reprovado por muitos, mas que, como se compreenderá, é
vital para a sua missão que não é de todo só essa.
Relembremos que a decisão de realizar The Hateful Eight
após o seu cancelamento devido à fuga do script é proveniente dele ter sido adaptado peça de teatro/leitura pública escrita pelo próprio Tarantino, e como tal
é natural que a maior parte da sua acção se foque em apenas um cenário, não
sendo por uma mera questão exibicionista (para isso já houve quem filmasse este
ano estas mesmas montanhas) que é filmado em 70mm. Por vezes cria-se a ilusão
de palco e The Hateful Eight torna-se teatro filmado, até pelas interpretações
que oferece dignas desse registo, um pouco como fez Liv Ullman, a musa de
Bergman, no seu Miss Julie do ano passado. Os 70mm constroem esse palco na tela
do cinema. O filme vive das suas
personagens, do seu simbolismo e do seu diálogo, que exprime todo o
ressentimento provocado pela Guerra de Secessão, a Guerra Civil que opôs Norte
e Sul durante a presidência de Lincoln entre 1861 e 1865, ano em que foi
assassinado. Em causa estava a escravatura de negros levada a cabo pelos
Estados do Sul e que foi abolida pelo presidente, criando uma rotura dentro dos
Estados Unidos. Está lá tudo em The Hateful Eight que não se inibe de utilizar
estes fantasmas para por vezes fazer cinema de terror, particularmente através
de uma diabólica, quase que possuída, Jennifer Jason Leigh que parece ter saído
d’O Exorcista, mas há também vómitos dignos de zombie e isolamento gelado, com
Kurt Russel a piscar o olho a The Thing de Carpenter. E não se confunda
referência ou homenagem com cópia e apropriação. Tarantino só sabe fazer a
primeira.
Entre um idoso coronel que
combateu pelo Sul, ao britânico carrasco, passando pelo caçador de prémios,
pelo xerife, pela fora-da-lei, pelo cínico justiceiro negro que sofreu a
secessão na pele, e terminando no símbolo que é Lincoln, estão aqui todos os
traumas deste período da história dos Estados Unidos, desenvolvidos e
representados em tela quase como uma lição histórica e social que o espectador
tem que saber merecer. Estão lá todos, quais personagens de Cluedo, lançando
suspeitas à Reservoir Dogs. E quando existem armas em punho a coisa muda de
figura e não deixa de ser irónico como essa ainda é uma realidade nos dias de
hoje por aquelas bandas. Não se pode esperar de The Hateful Eight apenas o
espalhafato estiloso e inteligente com que o seu realizador gosta de brindar o
público, e é por vezes o próprio público que ironicamente o escraviza quanto a
essa insconsciente obrigação de entertainment.
Na realidade estes Oito Odiados aproximam-se mais do estereótipo do “cinema
minimalista de autor” do que propriamente do show-off (fabuloso) de Pulp
Fiction. Isso não o impede de ter também o seu show-off, aqui muito mais
simbólico e contido, mas igualmente delicioso.
Há que saber dar valor à
genuinidade de The Hateful Eight, ao seu argumento, à sua metáfora, à sua
caracterização, às suas interpretações, mas sobretudo ao seu significado quer
para o cinema americano e a sua história em geral, quer para a história dos
Estados Unidos em si. Este filme é uma das coisas mais necessárias que passaram
nas salas de cinema nos últimos anos e, não sendo um produto imediato, só o
tempo lhe trará justiça.
Porque é bom: Abre ressentimentos e feridas históricas que os Estados Unidos procuraram esquecer, como o racismo, a guerra e a justiça; argumento misterioso, empolgante e metafórico; vive da pura essência do cinema narrativo e do desenvolvimento da personagem; tecnicamente perfeito, com uma cinematografia em película de 70mm livre de artifícios exibicionistas; enaltece a nobreza do cinema contido e minimalista sem nunca abdicar da sátira negra que caracteriza o cinema de Tarantino; a banda sonora de Ennio Morricone.
Porque é mau: Foge à regra da barrigada que se espera de Tarantino, mas isso não pode ser um defeito.
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