sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Lucky (2017)


Harry Dean Stanton deixou o cinema mais pobre com o seu falecimento no passado mês de Setembro de 2017, e parece algo de superior que dois meses depois assistamos à estreia do seu derradeiro filme, o seu último presente para a sétima arte, no Lisbon & Sintra Film Festival na presença do realizador John Carroll Lynch, ele próprio um character actor, como Stanton o foi, numa espécie de comunhão de homenagem a esta marcante figura. Lucky é o testemunho perfeito de um actor com uma delicadeza fora do normal, confundindo-se a personagem que dá nome ao filme com o próprio actor Harry Dean Stanton (Lucky foi propositadamente escrito com o veterano actor em mente): um nonagenário habitante de um vila rural no interior dos Estados Unidos. Lucky é uma reflexão sobre a mortalidade, cristalizada no dia a dia do seu protagonista, que, consciente do seu ateísmo por vezes desconcertante que não se coíbe de expressar, se vê cada vez também mais consciente da sua condição. Stanton, aos 90 anos, é o veículo de ilustração perfeito desse passar do tempo, com a sua voz árida, pele rugosa e cabelo cinza. De Bergman a Ozu, passando por Béla Tarr, foram vários os cineastas que procuraram aproximar-se desta eterna e cíclica temática, tão inspiradora como desoladora, cuidada de forma minimalista, respirada, carregando nos ombros das suas personagens centrais o peso dessa fatalidade que ainda nenhum homem conseguiu moralmente entender. Lucky segue essa corrente minimalista, preferindo a humildade contida da rotina e nos "amigos" que frequentam o bar, ou servem no café, à exploração aberta da temática, de barriga cheia e cinto desapertado, que normalmente desfila disparando noções e lições de moral ao espectador. O filme de John Carroll Lynch, que homonimamente conta com David Lynch num dos mais característicos papéis secundários, com uma belíssima reflexão metafórica sobre a condição de vida dos...cágados, não é nada disso, e nem sequer tem pretensões de ensinar algo redundante ao espectador ou movimentar as suas emoções de forma simplória e expectável. No fundo Lynch (e provavelmente Stanton) prefere o elogio à vida bem vivida, de despertador, roupa interior, yoga, café e cigarros, à sobredramatização da morte. Aqui tudo tem a dimensão que deve ter: o bom humor negro característico de Stanton e do seu Lucky, o peso da solidão, a beleza de alguns pequenos e simples discursos, das pequenas relações, dos pequenos gestos, dos pequenos momentos. A determinado momento do filme, Stanton, numa interpretação brilhante que olha de frente a de Paris, Texas, encarnando ipsis verbis e com uma negríssima ironia o igualmente nonagenário Lucky, afirma, em tímido desabafo, que tem medo. A sua interlocutora não sabe o que lhe responder. Resta-nos sorrir e caminhar.

Porque é bom: Uma brilhante interpretação de Stanton que é simultaneamente a sua última, que olha nos olhos a pesada herança de Paris, Texas, num filme belo, melancólico e bem humorado; a humilde reflexão sobre a mortalidade que é feita, que se confunde com a do próprio actor e os seus 90 anos, sem espalhafato; uma homenagem circunstancial ímpar que traz toda uma maior carga emocional ao filme

Porque é mau: O minimalismo de Lucky pode trair uma dimensão algo mais ambiciosa, mas se assim fosse estaríamos a falar de outro filme completamente diferente.



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