À data da publicação desta
crítica, está a decorrer no cinema Nimas em Lisboa e no Teatro Municipal Campo
Alegre no Porto o ciclo de cinema russo, do mudo à Perestroika, mais um grande
ciclo que exibe em sala um brilhante catálogo que raramente temos oportunidade
de ver. Man With a Movie Camera, de 1929, é um dos
primeiros marcos do cinema russo, realizado por Dziga Vertov. Apesar de nos primórdios do
cinema mudo se terem filmado regularmente cenas do quotidiano, como a célebre
chegada do comboio à cidade (L’arrivé
d’Un Train à La Ciotat) exibida publicamente pelos irmãos Lumiére em 1896,
o género documental nunca foi algo de verdadeiramente explorado, preferindo as
produções, que na altura ainda não o eram, optar pelo cinema narrativo, encabeçadas
por Le Voyage Dans la Lune (1902) e The Great Train Robbery (1903), e mais
tarde fazendo uso dos inter-títulos para traduzir diálogos.
Ao realizar Man With a Movie Camera, Dziga Vertov sugere filmar cenas do
quotidiano de uma cidade russa. No entanto há mais, muito mais, neste marco do
cinema além da simples documentação desse quotidiano pois a criatividade em
termos imagéticos, de realização e até de arcaicos efeitos especiais
caracterizam todos os 60 minutos do filme que infelizmente passam a correr. A
câmara, que filma e é filmada naquilo que se poderia em última instância chamar
de documentário sobre si próprio (a montagem é feita pela mulher de Vertov, que
chega a aparecer na sua sala escura a montar o próprio filme), capta uma
industrialização de sociedade e de máquina, galopante em termos metafóricos e
literais, tal é a variedade das imagens que nos inundam, desde telefonistas a
passar chamadas manualmente, a tapetes industriais, passando por eléctricos que
cruzam as ruas e corridas de cavalos e de atletismo. A dada altura esta
vertiginosa sucessão imagética tudo experimenta e chega a transportar o
espectador para dentro do próprio filme, filmando, além da câmara e os seus
técnicos, o seu público. A banda sonora da Alloy Orchestra (a mais consensual
para acompanhar o filme) assenta que nem uma luva, dando-lhe o ritmo que a
imagem exige e tornando Man With a Movie
Camera uma experiência ímpar em 2016, o que é dizer muito uma vez que foi
realizado em 1929. Não é fácil fazer um filme mudo que consiga captar a atenção
e interesse do espectador, mas Vertov consegue-o sem grande esforço num filme
que não tem sequer linha narrativa. É um dos filmes mais criativos de todos os
tempos, que quebrou barreiras de realização e conceito. Hoje, com todos os
Inceptions que para aí andam, poder-se-ia chamar a Man With a Movie Camera um filme dentro do próprio filme dentro do
próprio filme. Não deixa de ser engraçado ver como existe uma certa reciclagem
na maior parte das ideias, provavelmente todas, as que foram introduzidas nos
primórdios do cinema e esta obra de Vertov é pioneira em grande parte dessas ideias.
É mesmo assim, só mudam os valores de produção e os protagonistas.
Porque é bom: Ausência de linha narrativa dá lugar a uma criativa sucessão de imagens fragmentadas que se aproximam do documentário dentro do documentário; a exposição do quotidiano de uma cidade russa, desde a maquinaria industrial às corridas de atletismo; realização original e criativa, com efeitos especiais que vão além da estética para se tornarem conteúdo; sentimento vertiginoso, que suga literalmente o espectador para dentro do filme; o ritmo do filme faz esquecer o público menos habituado que este é um filme mudo.
Porque é mau: Podia ser mais longo.
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